segunda-feira, 2 de março de 2015
Texto de Nina Lavezzo.

O Agora É Tarde, apresentado por Rafinha Bastos, na TV Band, recebeu o ex-ator pornô Alexandre Frota, no programa exibido na quarta-feira, 25/02. Até aí, sem problemas, até o momento que, com naturalidade, Alexandre Frota relata um caso de estupro. Não qualquer caso: um estupro do qual ele foi o autor e cuja vítima era uma mãe de santo, a qual "dava pra ver pelas canelas que ela era boa". Sem nenhum choque, a platéia segue rindo do causo, com o incentivo constante do apresentador, que, ao fim da história (que termina, aliás, com a vítima desmaiada e sem nenhum auxílio aparente a ser prestado) pede aplausos ao autor do crime. Nada demais: só mais um dia disseminando a cultura do estupro e o racismo na televisão brasileira.

                                                                Vídeo aqui ou no final do post

De fato, talvez eu esteja sendo um pouco injusta ao limitar o título à nossa mídia e nossa sociedade. O machismo - e, consequentemente, a cultura do estupro - são heranças da colonização ocidental e se alastra a todos os países ocidentalizados. A relação entre mulheres e homens em outras sociedades era diferenciada e por isso podemos falar, por exemplo, em feminismo pós-colonial, visto que a batalha contra a opressão só pode existir quando a opressão é evidente, ou seja, após a naturalização do machismo nas sociedades ocidentalizadas. Portanto, conforme o machismo é enraizado nas sociedades, ele é difundido através da mídia. O machismo exibido e multiplicado pelos meios de comunicação é um fenômeno que atinge todos esses países, portanto, e está presente em filmes, séries, livros, músicas e outras mídias (50 tons de cinza está aí para provar). Ainda assim, hoje vamos tratar da mídia brasileira somente para falar sobre esse ocorrido em especial.

"Revoltado, o cavaleiro vai até o hotel onde a mafiosa se hospeda. Lá, ele a esculhamba: “Você, para mim, é nada, Lívia Marini!” E completa: “Você ocupou uma noite onde eu não tinha o que fazer! E estava com preguiça de sair à rua para pegar alguém! Só isso!”. A discussão é acalorada, mas Lívia se quebra no final e pede a Théo que a beije, que fique com ela. O capitão dá as costas e a deixa sozinha, fazendo-a sentir-se humilhada. Logo a vilã vira o jogo, indo procurar Stenio (Alexandre Nero), com hematomas pelo corpo, feitos por ela mesma. Ela mente, dizendo que foi agredida por Théo e vai á delegacia de mulheres, faz exame de corpo delito e o enquadra na Lei Maria da Penha." (MUNDO NOVELAS). Esse trecho da novela Salve Jorge demonstra vários lados do machismo e da sua continuidade sendo impulsionada: a mulher é sofre abuso verbal e o homem é violento com ela; a objetificação da mulher como um passatempo e um corpo a ser usado para o prazer masculino; a mulher implorando pelo amor do homem, ainda que agressivo; a mulher como "vilã", o homem como "cavaleiro"; a premissa de que mulheres vão abusar de leis que a protejam como mecanismo de opressão aos homens.

O racismo, assim como o machismo, está incrustado em nossa sociedade e, consequentemente, em nossa mídia. Talvez esteja tão enraizado que é possível fingir que não ver, não querer perceber o preconceito, e esconder-se no status de "Brasil: um país de todos", na idéia de que "não existe racismo no Brasil" e de que a miscigenação nos fez oprimir menos e nos ver mais como "iguais". Essas falácias percorrem o ideário comum sem perceber que, como o machismo, o racismo mata, agride e oprime milhares de pessoas. O Brasil tem uma peculiaridade tão única em seu machismo que cabe perfeitamente falarmos dela agora: as mulatas, a Globeleza, a nega maluca, a morena boa. É particular ao Brasil a idealização do negro em uma imagem de mulher específica: uma mulata de seios fartos, ancas fortes, bunda bonita e dura, que rebola ao caminhar, samba no carnaval e nunca diz "não". Essa é a caricatura que é vendida ao exterior e que incentiva também o comércio sexual no país. Claramente, é uma imagem machista - pois aquela mulher fictícia não tem vontade e nem personalidade, só sorri e seduz com seu corpo, que não é dela, mas de todos os outros ("ela dá pra qualquer um, bendita Geni!") - e racista - pois reduz toda a luta do movimento negro, desde a escravidão até os dias atuais, a um festival de mentiras que afirma que a igualdade já foi alcançada e que o preconceito não existe, ainda que a maioria dos estudantes de graduação seja branca e que a maioria dos moradores de favela seja negra. E esse racismo disseminado ignora ou, pior, vaia e demoniza a cultura essencialmente negra ou mesmo a cultura afro-brasileira. Não é a toa que o candomblé, a umbanda, o xangô e muitos outros elementos culturais e religiosos são rechaçados em geral, seja pela tradicional massa, seja pela mídia que reproduz esses valores mais difundidos. E é aí que entra o Alexandre Frota, falando que iria estuprar a mãe de santo pois se dissesse que queria "comer ela", ela provavelmente "jogaria uma macumba" nele que poderia tirá-lo da Globo. Aí entra o Alexandre Frota falando às suas amigas que esperavam o fim da consulta que aquele corpo desmaiado no chão devia ser resultado de um santo que baixou, e não de um estupro, como o foi, e é aí que entra as amigas aceitando essa desculpa. Mais do que tudo, é aí que entra a platéia rindo aos montes quando Frota diz que "comeu uma mãe de santo", quando ele conta todo o episódio e quando eles aplaudem. Tudo isso é o resultado e prova. Resultado de uma sociedade racista, que acha aceitável colocar uma negra praticamente nua dançando em rede nacional todos os anos no carnaval, sem se questionar o significado disso, assim como acha aceitável falar toda religião afrodescendente é macumbeira, da forma mais pejorativa possível. E é prova de que a falácia que existe no ideário comum é contagiante e falsa, que o Brasil é recheado de preconceito e que o racismo vive e vive forte em nossa sociedade.

Mulheres do Coletivo Negação em campanha "A Globeleza não nos representa".

O machismo está até óbvio durante o vídeo inteiro, mas o que mais me chocou e o que eu gostaria de falar sobre especificamente é do momento em que o Frota chama a "morena" da frente para se levantar. Em uma platéia composta principalmente de mulheres, com apresentador e convidado homens, falando sobre um estupro ou, como provavelmente eles gostariam de chamar, uma "aventura sexual", a própria disposição espacial e a definição de quem fala/quem escuta já configura uma hierarquia, mas isso é comum a programas de auditório em geral (gostaria de chamar a atenção para alguns programas que contrariam essa lógica, como o Minos & Minas, na TV Cultura, e o Esquenta!, na Rede Globo). Ao falar das canelas da mãe de santo - que prediziam que ela "era boa"-, Frota decide escolher uma mulher da platéia, que supostamente teria a mesma canela promissora da vítima do estupro, para servir de exemplo. Ele a chama para se levantar e, quando ela não obedece, ele vai fazê-la levantar-se. A menina está claramente envergonhada, mas ele não só ignora isso como a manda continuar em pé, de costas para ele, enquanto ele fica observando o corpo dela durante alguns segundos e contando a história. Atenção ao termo: ele não pede, manda. E ele não tem nenhum poder sobre ela, teoricamente, e sequer a conhece, mesmo assim há uma verticalidade aí, há uma relação de obediência. Como isso acontece? Bem, a estrutura patriarcal, de que o homem manda e é o chefe (seja da família, seja do local de trabalho) datada de muitos séculos ainda permanece no subconsciente social. Felizmente, essa estrutura não permanece inabalada, mas existe e isso se prova nesse curto episódio, nesses minutos que a mulher é quase obrigada (psicologicamente, não fisicamente) a aceitar ser usada de exemplo. Existe também nos minutos em que o Frota se viu no direito de abusar sexualmente da mãe de santo, de continuar a usar do corpo dela mesmo quando ela diz "pára". E existe nos segundos em que o Rafinha Bastos, na figura de homem e de chefe do programa, pede para a platéia aplaudir o relato de estupro e a platéia aplaude.

Essas atitudes ressaltam o papel da mulher como submissa, obediente, oprimida. São episódios que auxiliam a manutenção da misoginia no subconsciente social, eles propagam a inferioridade da mulher como sendo algo tão natural que lutar contra, reclamar ou querer se libertar disso é digno de ódio. Uma das maneiras de exteriorizar esse ódio e aplicar um "corretivo" a ação dessas mulheres que vão contra o machismo exacerbado é o estupro. A cultura do estupro está presente também nesse subconsciente social, seja por meio de piadas, seja pelos pequenos abusos que são tidos como "nada demais". Roubar um beijo no carnaval? Nada demais. Encoxar no ônibus? Nada demais. Assobios na rua? Nada demais. Elogios ao ver gostosas passarem? Nada demais. Dizer que quando a mulher diz não, ela quer dizer sim? Nada demais. Estupro? Nada demais. 
Tanto o alto número de casos registrados quanto os subnotificados revelam uma triste realidade: o Brasil tolera e incentiva o estupro a ponto de podermos afirmar que o crime faz parte da nossa cultura.
Por meio da culpabilização da vítima, estimulamos que as mulheres estupradas se escondam e acabem protegendo seus algozes. Afinal, é comum elas ouvirem de policias e da própria família que estavam embriagadas, usavam roupas curtas e apertadas, que andavam sozinhas à noite ou não deixaram claro que não desejavam o ato sexual. A vítima, portanto, sente medo e vergonha de denunciar.
A sexualização da mulher como objeto é outro fator que estimula o alto número de casos. Desde crianças aprendemos que o corpo da mulher é um objeto que pode ser consumido como qualquer outro. O menino cresce acreditando nisso e, o pior, a menina também.
O estupro tornou-se, portanto, tão banal que passou a ser aceito e tolerado. Basta ver a pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgada no primeiro semestre deste ano e que revela, após correção dos dados, que 26% dos entrevistados acreditam que uma mulher usando roupa que revele o corpo merece ser atacada. (Mariana Fusco Varella, A Cultura do Estupro) 
A mídia acaba sendo um dos responsáveis pela disseminação dessa cultura. Dessa tanto de que o estupro é normal (através da objetificação do corpo, principalmente), quanto de que a mulher é culpada pelo estupro (disseminando a noção de que mulheres respeitosas seguem um padrão de conduta e de vestimenta cuja dissidência seria punível de várias formas, da crítica ao estupro). As propagandas são um mecanismo de fazê-lo. Observemos as propagandas de cerveja: é só você abrir a garrafa que uma mulher com um corpo escultural e decote acentuado estará ao seu dispor, "pedindo" por você só com o olhar. Nenhuma dessas propagandas pensou em criar um diálogo onde os dois se conhecem, nem em saber se a mulher realmente quer algo com ele ou só estava vestida como queria e olhando pra quem quisesse. Nenhuma dessas propagandas pensou em inverter os papéis e colocar uma mulher bebendo. E todas elas sugerem que o homem terá aquilo que queria, pois ele é homem (mais homem ainda bebendo uma Devassa, uma Brahma, uma Skol, uma Kaiser, uma Heineken, etc). As novelas também dão continuidade tanto à estrutura patriarcal quanto à cultura do estupro (ainda que recentemente, isso venha mudando bem de leve). A novela das 21h da Globo atual mostra muito bem isso, a Império, pois o pai é o chefe da família, controlador a ponto de não deixar sua ex-mulher se casar novamente e destrata-la constantemente, e é o dono da grande empresa que a novela gira em torno de. Em geral, todas as novelas disseminam o padrão de família tradicional, que, por si, propaga a estrutura patriarcal. Simultaneamente, as mulheres que são autônomas ou que querem se distanciar do homem (o bonzinho) que cuida de todos os assuntos da família e dos negócios costumam ser as vilãs e se dar mal no final da novela. De fato, são exemplos do dia a dia, não tão explícitos quanto a entrevista no Agora É Tarde, mas que demonstram o papel da mídia brasileira para a continuidade do machismo, do racismo, da cultura do estupro e da misoginia.

O trabalho do fotógrafo Rion Sabean, "Men-Ups", questiona a misoginia e a objetificação da mulher em um ensaio bem humorado em que homens assumem o papel das tradicionais pin-ups.

Gostaria de concluir lembrando que mais de 50 mil mulheres foram estupradas em 2013, sendo que 65%, em média, não denuncia o abuso e, portanto, não está nesse senso. Se alguém é aplaudido por ter estuprado alguém e não é punido por isso, não só estamos sendo insensíveis ao sofrimento de milhares de mulheres, como estamos incentivando esse comportamento. Por isso esse texto, por isso não podemos ficar caladas, não mais. 



BIBLIOGRAFIA:
VARELLA, Mariana Fusco. A Cultura do Estupro. Dr. Drauzio. Link: http://drauziovarella.com.br/para-as-mulheres/a-cultura-do-estupro/.
MADEIRO, Carlos. Brasil tem 50 mil casos de estupros por ano; Roraima lidera o ranking. UOL notícias cotidiano. Maceió, 11/11/2014. Link: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/11/11/pais-tem-50-mil-pessoas-estupradas-por-ano-roraima-lidera-ranking.htm.
Compromisso e Atitude. Dados nacionais sobre a violência contra as mulheres. Link: http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-nacionais-sobre-violencia-contra-a-mulher/.
GARDNER, Catherine Villanueva. Historical Dictionary of Feminism Philosophy. The Scarecrow Press, Inc. Lanham, Maryland. Toronto. Oxford, 2006.
GUSMÃO, Liliane. 50 tons de preconceito, repressão sexual e machismo. Blogueiras Feministas.  Publicado em 16/02/2015. Link: http://blogueirasfeministas.com/2015/02/50-tons-de-preconceito-repressao-sexual-e-machismo/.


Programa completo Agora É Tarde, com Alexandre Frota, o relato está no minuto 10:08 , mas a entrevista é toda recheada de machismo, como era de se esperar. Dá uma olhada e avalie por você: 


Um comentário:

  1. Olá Nina tudo bem com você? espero que sim.


    Este tema e realmente complicado, mas penso que sem mudar a sociedade, não tem como mudar a mídia.


    Mudando um pouquinho de assunto.


    Eu não sei se você viu, mas criaram um blog nojento chamado tio Astolfo, que defende abertamente o estupro de mulheres e a pedofilia.


    E ainda me colocaram como autor do blog, só imagina o constrangimento que e para mim isso, por isso te peço que denuncie o blog


    http:// tioastolfo. com

    (Emende na barra do navegador a URL

    Eu coloquei assim a URL assim para diminuir o risco deste comentário ir direto parar na caixa de spam.)


    Para a policia federal por e-mail (crime.internet @dpf. gov .br) e/ou depois denuncie o para a http:// safernet. org .br/


    Ai talvez a PF de um jeito de tirar esta imundice de blog do ar e punir o dono.

    Se possível peça a outras pessoas que denunciem também, Conto com a sua ajuda.

    Você não precisa publicar este comentário, eu só fiz ele porque não achei nenhum formulário para contato aqui, pode apaga o este comentário depois de ler.

    Um abraço

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