terça-feira, 17 de março de 2015

Texto de Nina Lavezzo de Carvalho

Sempre me pareceu normal contabilizar sexo. Talvez por influência dos filmes ou da realidade social, a ideia de ser "mais maneiro" porque "traçou uma mina" me parecia ser vencida por mim quando eu mesma compartilhava o número de vezes que eu, mulher, havia "traçado" um cara. Orgulho pessoal por achar sexo algo natural e bom ou influência da cultura hegemônica ou ambos, seja como for, fato é que o número de camisinhas gastas me parecia um modo sensato de contar quantas vezes as pessoas faziam sexo. Até o momento peculiar, breve, mas importantíssimo, em que minha amiga perguntou "por que vocês contam as vezes que vocês transam pelo número de vezes que o cara goza? Não é como se ejacular fosse mais importante que termos um orgasmo, então por que vocês fazem isso?". Por quê? E por que eu não era a única a fazer isso? Por que a grande maioria das pessoas que contabilizam esse tipo de coisa o fazem em função da ejaculação? E mais importante ainda: por que eu nunca tinha sequer pensado sobre aquilo até aquele exato momento? Depois daquela pergunta, minha percepção sobre sexo e sexualidade nunca mais foi a mesma e é exatamente por isso que decidi começar esse texto por ela, questionando vocês, caso nunca tenham pensado nisso antes. Depois daquela pergunta que mudou minha vida, a minha percepção sobre sexo e sexualidade nunca foi a mesma. E é aqui, questionando vocês, caso nunca tenham pensado nisso antes, que começo a nossa pequena discussão sobre o orgasmo feminino, sua construção social e os tabus que o envolvem.




Na história da civilização ocidental, a mulher é constantemente colocada em lugar de inferioridade, submissão e dependência em relação ao homem, autônomo e superior. Das mulheres, diziam os antigos gregos:
" 'Temos a hetaira para os prazeres do espírito, diz Demóstenes, a palákina para o prazer dos sentidos e a esposa para nos dar filhos.'(...) Em Atenas, a mulher era encerrada em. seus aposentos, adstrita por leis a uma disciplina severa e fiscalizada por magistrados especiais. Durante toda sua existência, ela permanece menor; é dependente do poder de seu tutor" (BEAUVOIR, vol. I, 1970).
Continuamente essa imagem de mulher menor foi transmitida através do tempo, isso é um fato histórico bem mais do que uma escolha de como ver o passado. De fato, a tradição judaico-cristã ocidental, cuja influência é enorme no mundo globalizado atual, tem papel importante aí, seja na figura de Eva, seja na figura de Maria. Se, por um lado, Eva é a culpada pelo pecado inicial, é quem é seduzida pela serpente e morde a maçã, encarnando em si o mau e o sombrio; por outro lado, Maria é a mãe, a obediente e temente à Deus, serva d'Ele e de seu filho. Isso foi transmitido diretamente à vida social, de modo que a mulher honrosa é aquela que segue um trajeto pré-concebido (a filha, a esposa, a mãe, como categoriza Simone de Beauvoir) cuja função é a reprodução e a mulher que leva ao pecado, que induz à luxúria, que tem veneno em si, o "Outro" (BEAUVOIR, vol. I, 1970), é qualquer mulher que após o término da infância, não é ainda mãe. A figura de Eva é equivalente à de Madalena, nesse sentido, e essa fala se coloca bastante esclarecedora:
" 'Mulher! És a porta do diabo. Persuadiste aquele que o diabo não ousava atacar de frente. Foi por tua causa que o filho de Deus teve de morrer. Deverías andar sempre vestida de luto e de andrajos'. Toda a literatura cristã se esforça por exacerbar a repugnância que o homem pode sentir pela mulher."(BEAUVOIR, vol. I, 1970)
 O Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, mostra bem a dualidade entre sacralidade e pecado encarnada na figura da mulher.

Demonizada por ser o convite ao pecado e santificada por ser a progenitora do deus na terra, a mulher cumpre um papel dual na literatura cristã, contudo, permanece sempre como objeto. Quando convidada pela serpente, subjugada, a mulher aceita. Quando escolhida por um anjo, também subjugada, a mulher aceita. De fato, a posição da mulher nesse contexto é inerte:
"...é um escândalo odioso uma existência autônoma encerrada numa carne de mulher; a carne feminina é detestável a partir do momento em que uma consciência a habita. O que convém à mulher é ser puramente carne; (...) como objeto de gozo o sexo frágil tem um lugar na terra, humilde sem dúvida, mas válido; ele encontra uma justificação no prazer que o macho extrai desse objeto, mas somente no prazer. A mulher ideal é perfeitamente estúpida e submissa; está sempre preparada para acolher o homem e nunca lhe pede nada."(BEAUVOIR, vol. I, 1970)
Essa realidade é rapidamente transposta ao sexo: a mulher é receptáculo do sêmen, e para isto serve, para recebê-lo, gerá-lo, pari-lo, nutri-lo, cria-lo. 

Imagem da luta pela legalização do aborto na busca da mulher pelo direito ao seu próprio corpo.

A relação entre sexo e reprodução era indissociável e assim permaneceu durante muito tempo, alterando-se somente durante o século XX. As explicações biológicas direcionavam o corpo da mulher à reprodução e nada mais: o que parecia científico era a continuidade de uma estrutura social que tinha na procriação uma função muito bem delimitada para a mulher. A ausência de individualidade, direitos e educação faziam parte da composição social que impossibilitava à mulher que desejava ser aceita publicamente a busca de qualquer outro destino senão a maternidade. Era, inclusive, parte da divisão sexual do trabalho (LOYOLA, 2002), cuja organização social se baseava no trabalho do homem e na atividade materna por parte da mulher:
"Numa ótica diferente, Tabet (1985) articula relações de produção e relações de reprodução, definindo a procriação como um trabalho que, à maneira do trabalho intelectual, se cumpre no corpo humano, e o processo reprodutivo como um processo de produção que implica a exploração da mulher e a apropriação social de seu corpo e mesmo de sua pessoa por meio do casamento." (LOYOLA, 2002)
 Assim, durante um longo período, a mulher não era um ser com poder de escolha, com perspectiva e com individualidade, mas senão o instrumento de procriação da espécie: "no mundo humano, a mulher transpõe as funções de fêmea animal" (BEAUVOIR, vol.I, 1970). E a consciência da mulher como tal é dada na sociedade, dentro da qual ela tinha pouca capacidade de gerar mudança (a qual foi só construída a partir de uma luta conjunta através do tempo que encontra hoje seu período mais áureo, ainda que continue sombrio, oprimido e encarcerado). Dessa forma, a mulher fora fêmea e, como tal, deveria ser caçada pelo macho e por ele possuída: 
"Não é apenas um prazer subjetivo e efêmero que o homem busca no ato sexual; quer conquistar, pegar, possuir; ter uma mulher é vencê-la; penetra nela como o arado nos sulcos da terra; ele a faz sua como faz seu o chão que trabalha: ara, planta, semeia; estas imagens são velhas como a escrita; da Antiguidade aos nossos dias poderíamos citar mil exemplos: 'A mulher é como o campo e o homem como a semente', dizem as leis de Manu.(...) A mulher é a presa do esposo, sua propriedade."(BEAUVOIR, vol. I, 1970)
Assim, ao homem é concedido o prazer e o domínio e à mulher, que é tida como coisa, resta somente a função que lhe é de origem e todas aquelas que seu dono requerer. A naturalização da mulher como objeto foi uma artimanha cruel e duradoura, da qual não posso falar melhor do que faz Beauvoir:
"Mas dizer que a Mulher é a Carne, que a Carne é Noite e Morte, ou que é o esplendor do Cosmo, é abandonar a verdade da terra e alçar vôo para um céu vazio. Porque o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de um objeto carnal (...). É, também, inteiramente verdade que a mulher — como o homem — é um ser arraigado na Natureza; ela é mais do que o homem escravizada à espécie, sua animalidade é mais manifesta (...). Assimilá-la à Natureza é um simples parti pris[parti pris]        Poucos mitos foram mais vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os privilégios e autoriza mesmo a abusar deles. Os homens não precisam preocupar-se em aliviar os sofrimentos e encargos que são fisiologicamente a parte da mulher, porquanto 'são da vontade da Natureza'; eles se valem do pretexto para aumentar ainda a miséria da condição feminina, para denegar, por exemplo, à mulher, qualquer direito ao prazer sexual, para fazê-la trabalhar como um animal de carga." (BEAUVOIR, vol. I, 1970)
"Meu corpo [diferente do] seu playground político"

Esses antecedentes constroem, em cima do prazer feminino, não só uma mitologia como também uma despreocupação e um descomprometimento deveras grande. De fato, poucas eram as mulheres que tinham prazer nos casamentos (BEAUVOIR, vol. II, 1970). Aos homens, era permitido e perfeitamente comum relacionamentos extra-conjugais; às mulheres, como era de se esperar, não. Não à toa muitas desenvolviam relações homossexuais com amigas ou mesmo empregadas, ou então buscavam o prazer fora do casamento (cujo cunho traumático da defloração jamais seria esquecido) com amantes. A própria virgindade era uma questão extremamente polêmica, para alguns povos sagrada, para outros perigosa, e com uma mitologia própria que não cabe aqui (para mais, ver O Segundo Sexo - fatos e mitos, vol. I, Simone de Beauvoir, a partir da pág. 194).

Com a crescente autonomia das mulheres, a partir do século XVIII com a possibilidade de trabalhar, essa ordem social contextualizada há pouco passa a ser questionada, mas é só com o início do movimento feminista organizado no século XIX que esses questionamento se institucionaliza. Ao longo do século XX, não sem muito suor, sangue e luta, a mulher alcança seus direitos e passa a ser vista como indivíduo uno e completo em si, apesar de ainda sofrer duras opressões, como o baixo salário relativo ou a objetificação do corpo. Contudo, a percepção do espaço que a mulher ocupa na estrutura social passa a ser mais claro à própria mulher, diminuindo portanto a alienação, ainda que não dê fim à opressão em si. A incorporação da mulher no processo produtivo é de especial importância, pois rompe com a divisão sexual do trabalho e com a predestinação da reprodução como única função social (LOYOLA, 2002).

Girl Power: movimento de empoderamento da mulher, livremente traduzido como "o poder das minas".

A pílula anti-concepcional e a inseminação artificial foram revolucionárias do ponto de vista tecnológico para romper com a associação entre sexo e reprodução. Assim, "a sexualidade (enquanto domínio do prazer)" (LOYOLA, 2002) também se torna a parte, dando lugar à exploração do sexo como local de descoberta do prazer dos corpos. Isso é revolucionário, pois, visto que não é mais função da mulher parir e menos ainda é natural que ela só transe com esse fim, o prazer, o gozo e o deleite, que foram antes sempre rechaçados, têm agora lugar nas relações amorosas e laços conjugais (no sentido amplo). Cria-se um novo "tipo" de relacionamento com o sexo e a sexualidade, carregado de muitos outros valores éticos e morais que entraram em voga ao longo do século XX: 
"Em termos de tipos ideais (no sentido weberiano), e para fins estritamente analíticos, é possível pensar, por exemplo, em dois modelos históricos de reprodução e de controle da sexualidade: um mais antigo, ligado às sociedades patriarcais, que podemos chamar, na falta de um nome melhor, de tradicional, baseado no sistema de alianças e em normas estritas de homogamia, no amor conjugal, na indissolubilidade dos laços matrimoniais, numa rígida divisão de trabalho entre os sexos e num rígido controle da sexualidade feminina, na submissão jurídica e social da mulher ao homem, na identidade familiar, na contracepção apoiada na idade ao casar e completamente dependente do intercurso sexual; e em outro, historicamente mais recente ou moderno, baseado na escolha individual do cônjuge, em normas relativamente mais flexíveis de homogamia, no amor-paixão, na possibilidade de divórcios e separações freqüentes, numa divisão de trabalho pouco rígida entre os sexos, na liberação (e mesmo valorização) da sexualidade feminina, na igualdade jurídica e social entre os sexos, na identidade individual, no controle tecnológico da contracepção que, no limite, pode dispensar o intercurso sexual para fins reprodutivos" (LOYOLA, 2002)
Com a libertação feminina e a consequente libertação do prazer sexual para ambos os sexos (parte importante da revolução sexual da segunda metade do século XX), finalmente, o orgasmo entra em cena. Através dos preconceitos quanto ao prazer feminino criados historicamente pela estrutura patriarcal no tempo, criaram-se expectativas e mitos em torno da sexualidade da mulher e, como era de se esperar, o assunto era um tabu de imediato. Hoje, de fato, o orgasmo feminino, representação do prazer da mulher no sexo, é menos polêmico. Podemos atribuir isso a dois fatos: 1) a popularização da luta feminista pelo empoderamento da mulher e autonomia sobre seu corpo; 2) o trabalho de profissionais como Kinsey em torno do assunto, que desmistificaram e deram acesso a mais informações sobre sexo em geral. É interessante compreender como o primeiro fato, isso é, a busca pela igualdade de gêneros e empoderamento da mulher, tem relação com o prazer sexual. Por um lado, a mulher tem mais consciência de seu corpo e se sente a vontade para buscar o próprio prazer no ato sexual, e não somente agradar o parceiro, pois é inteira em si, não mais dependente e submissa às vontades do homem. Por outro lado: "... a necessidade de transpor o ideal democrático ao terreno sexual, recoloca o orgasmo no modelo dos dois sexos, reconstruindo, em certa medida, a idéia do sexo único, aquela de um prazer único..." (LOYOLA, 2002). Assim denominando a atividade sexual como um exercício pessoal cuja instância social envolvida não tem uma funcionalidade específica e imprescindível à dinâmica social como antes:
"As práticas sexuais, uma vez autonomizadas, tornam-se mensuráveis, isto é, podem ser objeto de cálculos racionais quanto à finalidade, apoiadas numa contabilidade do prazer que tem como unidade de base o orgasmo (Pollak, 1982). A busca do prazer toma a forma de busca da verdade, substituindo a busca da felicidade do século XIX; o sexo e o amor são lançados na esfera intimista da individualidade. A sexualidade torna-se constitutiva da própria subjetividade, relegando ao passado uma ética sexual centrada na economia dos atos e de domínio público (Foucault, 1976; Sennet & Foucault, 1981)." (LOYOLA, 2002)
 Fazer o que? É assim...

E, assim, voltamos finalmente à questão que iniciou o texto: "a contabilidade do prazer que tem como unidade de base o orgasmo". Desse modo, faz bastante sentido eu pensar como pensava, que é normal contabilizar o sexo, mas por que o orgasmo masculino como unidade de medida? Todo o arcabouço histórico que compõe nossa realidade social convive nela ainda hoje. Herdamos um conjunto de símbolos e significados que não é possível superar com facilidade, de modo que o processo é doloroso e demorado (como prova a luta feminista e a luta de tantos outros grupos marginalizados e oprimidos).
"A cultura, a linguagem, a crença, internalizam nas pessoas certas normas e valores profundamente tácitos, dados por 'naturais'. O habitus reproduz essas disposições estruturadas de maneira inconsciente, regulando e harmonizando as ações. Assim o habitus se converte em um mecanismo de retransmissão, por ele que as estruturas mentais das pessoas tomam forma ("se encarnam") na atividade da sociedade. As consequências disso são brutais." (LAMAS, 2000, tradução livre)
"Eles nos ensinam a ficar quietas, mas em breve nós vamos mostrar a eles o poder de nossas vozes".

É o habitus que transfere a nós, hoje em dia, a noção de que, em alguma instância, nem que seja no número de vezes, o sexo seja em função do homem. É algo presente no inconsciente social que devemos lutar para nos libertarmos, pois nos prende como o antigo conceito (ainda que não tanto quanto). Mais:
"Todo o social é vivenciado pelo corpo. E mais, para Bourdieu, a socialização tende a efetuar uma 'somatização progressiva das relações de dominação' de gênero. Esse trabalho de internalização, ao invés de sexualmente diferenciado e sexualmente diferenciador, impõe a 'masculinidade' aos corpos dos machos humanos e a 'feminilidade' aos corpos das fêmeas humanas." (LAMAS, 2000, tradução livre)
E assim, mantém-se a estrutura de dominação, ainda que o orgasmo e o prazer feminino estejam em pauta. Isso nos leva a pensar que a revolução sexual é insuficiente se não muda os paradigmas de masculino e feminino. Assim, faz total sentido que tantas pessoas associem o sexo ao orgasmo masculino e não ao feminino, pois essa é parte da somatização da opressão sofrida durante séculos.

Trazer isso para a discussão e questionamento, é livrar-se da alienação e, portanto, um passo a mais na libertação contra a opressão estrutural ou sistemática. Assim, ao interiorizarmos uma nova perspectiva e questionar a doutrina imposta, abre-se o caminho para a possível quebra dos paradigmas estigmatizados de sexualidade e até do próprio sexo. Bem como anteriormente a posição submissa foi questionada para a alteração do status quo, agora também a mudança só vira a partir do questionamento e da busca por ela.

"Sim, é possível!" - Cartaz imita imagem símbolo da luta feminista em perspectiva latinoamericana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Volumes I e II. Difusão européia do livro, São Paulo. Librairie Gallinard, Paris. 1970.
LAMAS, Marta. Cuerpo: diferencia sexual y género. Taurus Piensamiento. 2002. Primeira edição: maio de 2000.
LOYOLA, Maria Andréa. Sexualidade e medicina: a revolução do século XX. Cad. Saúde Pública [online]. 2003, vol. 19. ISSN 0102311X. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000400002 .

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