sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Por Nina Lavezzo de Carvalho

 

 Pense em sexo. Pense em literatura. Tente ligar os dois em um único conceito. Got it! Kama Sutra. Acertou? Bem, não tinha muito como errar...
Instalação "Unity", pelo coreano Bohyun Yoon, formando posições do Kama Sutra com as sombras na parede [mais aqui].
 

O Kama Sutra ou Kama-Sutras é um livro da tradição indiana escrito por Vatsyayana, nobre e sábio indiano, no século IV.  "O seu nome provém da divindade masculina hindu Kama, que simboliza o desejo e o amor carnal, e Sutra, que significa conjunto de ensinamentos, no antigo sânscrito" (GALLOTTI, 2003, pg. 3). Em geral, é um manual com ensinamentos sexuais, comportamentais, românticos, sociais e até mesmo higiênicos. Tinha como público alvo os homens da nobreza indiana, ou, como são chamados, os "homens citadinos", que seria "um homem que se sociabilizava nas cidades, que frequentava as festas dos haréns reais" (WEISSHEIMER, 2015, pg. 5). Isso, porém, não fez com que a obra deixasse de abarcar o prazer feminino, cujo ápice através do orgasmo deveria ser alcançado pelo casal através de técnicas e dedicação. Aliás, a doutrina deixa claro que a vida conjugal só pode ser feliz se houver satisfação dos desejos mútuos, segundo os moldes prescritos nos ensinamentos (Sutra).


 Templo do Kama Sutra, em Khajuraho, na Índia. Foto de Backpacker Photography.


Soa bom, não? Bom e justo, eu pensei... se não fosse essa oração final, depois da vírgula. Sim, se não fosse o Sutra.


 O alfabeto do Kama Sutra, letra L [disponível aqui].

O Sutra, como conjunto de ensinamentos, tem a capacidade de guiar os comportamentos e a moral. Diferente do que muitos pensam, o Kama Sutra não é somente um livro sobre a arte de amar, é também (se não principalmente) um manual comportamental que procura auxiliar os homens a adequar-se à realidade indiana da época.

Ilustração do Kama Sutra de Vatsyayana. Shiva abraçando vários adoradores que derramam seu amor e afeto nele.
"A inserção e o reconhecimento da atividade sexual como algo indispensável à vida foi uma estratégia de manutenção, não somente da dominação masculina, mas também dos poderes políticos da classe bramânica frente aos avanços tanto das doutrinas hedonistas, quanto do ascetismo budista. Neste sentido, houve certo sincretismo na tradição hindu, pois foram absorvidas algumas proposições filosóficas do hedonismo na teoria e nas práticas sexuais instituídas por Vatsyayana. Mas um hedonismo exercido, sobretudo, pelos homens" (WEISSHEIMER, 2015, pg. 6).

 O Kama Sutra baseia-se em três princípios regulativos: Dharma, Artha e Kama. O Dharma seria o cumprimento de preceitos religiosos, o Kama a satisfação dos sentidos e o Artha a busca pelo acúmulo de riquezas. Esses três preceitos ilustram as mudanças que o hinduísmo precisava passar para se adaptar.


 O alfabeto do Kama Sutra, letra M [disponível aqui].

E o que o feminismo tem a ver com isso?! Tudo. O manual que trazia ensinamentos ao homem sobre como levar a mulher ao orgasmo não era, como poderíamos imaginar, uma busca por igualdade de direitos e deveres entre gêneros. Pelo contrário, "... no que se refere ao prazer e ao sexo, Vatsyayana escreveu que os homens deveriam proporcionar prazeres sexuais às suas esposas para que os mesmos conseguissem manter uma forma de dominação sobre elas, mediante o prazer sexual" (WEISSHEIMER, 2015, pg. 5). Vatsyayana construia, então, através de seu discurso, uma identidade de gêneros (com a dicotomia mulher/homem que é mantida em toda a obra). Nessa identificação, a mulher era Artha e, como riqueza, deveria ser conquistada e mantida. Para mantê-la, servia-se o Kama, garantindo o bom funcionamento do matrimônio e o controle masculino na casa.
"A ética voltada para a satisfação dos prazeres femininos não representou para Vatsyayana uma forma de benevolência para com o gênero feminino. As relações de gênero na antiguidade indiana eram extremamente díspares [...]. No discurso de Vatsyayana havia preocupações em manter alguns aspectos que caracterizam uma dominação masculina, tais como a primazia do patriarcado como poder hegemônico do lar, a observância da virgindade feminina, a possibilidade dos homens usufruírem dos prazeres oferecidos pelas cortesãs e, em especial à cultura hindu, a legitimação do casamento poligâmico" (WEISSHEIMER, 2015, pg. 5-6)
 Ilustração do Kama Sutra de Vatsyayana, com duas mulheres deitadas juntas, uma presenteando a outra com uma flor.

Conforme proposto por Judith Butler, "...as identidades de gênero não são fixas; elas movem-se no sentido de preencher as necessidades individuais dos atores sociais que as desempenham" (GAMA, p. 56, in: WEISSHEIMER, 2015, pg. 3). Assim, o livro ajudou na configuração dessas identidades de gênero. Por exemplo, a "natureza" feminina era considerada passiva, por mais que as mulheres assumissem a posição de controle em algumas posições do Kama Sutra, pois era posto como observação que essa inversão de papéis trazia erotismo. Ora, se os papéis podem ser invertidos, é porque há uma pré determinação dos mesmos.

 O alfabeto do Kama Sutra, letra O [disponível aqui].

Alicia Gallotti conseguiu transcender algumas das predeterminações do Kama Sutra de Vatsyayana em seu conjunto de livros: Kama Sutra e outras técnicas orientais: os segredos do Oriente ao seu alcance; Kama Sutra gay; Kama Sutra para a mulher: sexo sem limites; Kama Sutra para lésbicas; Kama Sutra para o homem; Kama Sutra XXX: as práticas sexuais mais inconfessáveis; Kama Sutra: as 101 posições mais sensuais; Kama-Sutra do sexo oral: os segredos do prazer para ele e para ela; e o Novo Kama Sutra ilustrado: as melhores posições para fazer amor. Ao ampliar as perspectivas de gênero e readaptar o guia indiano à realidade globalizada atual (em suas diversas versões do clássico), a autora altera as noções comportamentais do Sutra e dá à obra um caráter muito mais ilustrativo e didático quanto às questões amorosas e sexuais em detrimento das sociais. Isso é positivo pois diminui a opressão ao papel feminino, que já não é mais objeto, propriedade (aliás, a própria autora é uma mulher).

 The Kama Sutra of Sleeping for Couples [O Kama Sutra do Sono para Casais], parte 2. Por Chaos Life.

A mulher é também o público alvo, nesse caso, e as prescrições da obras (ao menos do Novo Kama Sutra ilustrado, de 2005)  preveem o prazer ou desconforto, conforto ou esforço, dor ou desejo do casal. Também o casal - ou amantes, como trata a autora - é indefinido biologicamente: sua obra alcança diversas sexualidades, ainda que não todas. Além disso, a autora trata de tabus atuais e mesmo da opressão feminina em relação aos homens quanto à luta contra os papeis sexuais tradicionais:
"Os amantes modernos bem que poderiam dar espontaneamente pancadas leves um no outro, mas a violência é um tabu em nossa sociedade - as pessoas a temem, e têm bons motivos para isso. E embora o Kama Sutra sugira que a mulher retribua as pancadas do homem, muitas mulheres temem ser rejeitadas por esse comportamento. Quem aprecia a violência ritualizada é estigmatizado em nossa sociedade, além de ser alvo de muitas piadas" (GALLOTTI, 2003, pg. 12).
ou
"Esta posição é um modo bastante impessoal do homem satisfazer-se. O contato visual é bloqueado pelas pernas levantadas da mulher, cujo esforço para mantê-las assim torna a experiência desconfortável para ela, e o fato de suas pernas ficarem juntas não permite que o clitóris seja estimulado pelo pênis. Eu a vetaria" (GALLOTTI, 2003, pg.39).

 O alfabeto do Kama Sutra, letra G [disponível aqui].

Assim, Gallotti trouxe uma percepção mais abrangente nas novas edições do Kama Sutra, apesar de que aprimoramentos ainda sejam necessárias no sentido de diminuir ainda mais as opressões expostas no discurso e, portanto, nos papéis de gênero delimitados. Quanto ao Kama Sutra de Vatsyayana, apesar de continuar sendo um guia de posições e carícias sexuais, percebemos que é muito mais Sutra -ensinamentos, disciplina, moral- do que Kama -desejo, prazer, satisfação sensorial.

The Comma [vírgula] Sutra: a brincadeira exibe também uma possibilidade de pensar um guia sexual sem a determinação prévia de sexo biológico. Será que isso será feito algum dia? [Retirado daqui].

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
VATSYASYANA. Kama Sutra. Complete in Seven Parts. Benares - New York. Impresso para a Society of the Friends of India, 1883 - 1925. Disponível em: https://archive.org/stream/kamasutraofvatsy00vatsuoft#page/n5/mode/2up.  Acesso: 25/09/2015.
GALLOTTI, Alicia. Novo Kama Sutra Ilustrado: As melhores posições para fazer amor. Temas Novos, 2003.
 WEISSHEIMER, Felipe Salvador. O Kama-Sutras para além de Vatsyayana: relações de gênero nas leituras do antigo livro indiano. Publicado no XVII Simpósio Nacional de História, 27 a 31/julho/2015. Florianópolis - SC.

Um comentário:

  1. https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/2446

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