sexta-feira, 10 de abril de 2015
Texto de Bruna Corrêa.
Muito se tem falado sobre literatura erótica. Com o boom de “50 tons de cinza”, o mercado editorial obteve vantagem na
nova febre e começou a lançar a maior quantidade de livros sobre o tema possíveis,
com isso levando mais pessoas às livrarias e o assunto, à mídia. A maioria
destes livros lançados foram obras apressadas e cujo conteúdo não fazia
sentido, de teor extremamente apelativo e constituídos por vários volumes
(quanto mais continuações, melhor: os consumidores de literatura fraca
continuavam comprando, afinal, “precisavam saber o final”).
Mas, eis o lado positivo – editoras mais sérias começaram a reeditar
livros eróticos clássicos, e também de autores um pouco desconhecidos. A
artimanha da capa bonita foi amplamente utilizada – e foi nesta que eu me
prendi. Andando por uma livraria, eu me deparei com um livro rosa choque de capa
dura, um dos exemplares mais bonitos que já vi. O livro era “Pornô Chic”, da
Hilda Hilst, uma coletânea contendo os trabalhos eróticos publicados pela
autora na década de 90, e alguns artigos sobre a sua obra. Já tinha escutado
alguma coisa sobre a Hilda – sabia que ela era polêmica e que “O caderno rosa
de Lori Lamby” era a obra brasileira mais ousada e deturpada. Não hesitei,
portanto, e comprei o livro.
Então, eu comecei a descobrir a literatura erótica escrita por mulheres.
Antes, eu só tinha ouvido falar dos autores masculinos – Marquês de Sade, D.H.
Lawrence e Bukowski, por exemplo. Li Lawrence e achei pedante. Li Bukowski e
achei machista. Com a HH, um novo caminho se abriu. Li “O Caderno Rosa de Lori
Lamby” e achei brilhante, audacioso, forte. A autora não economiza no jargão
popular e vulgar, ela dá nome às partes do nosso corpo como nós fazemos no
nosso dia a dia e nos faz sentir confortáveis. Com “Contos d’Escárnio” e “Cartas
de um sedutor”, a minha admiração continuou a crescer – só de pensar que era
uma mulher escrevendo aquilo me deixou fascinada. Fui, então, ler as
entrevistas e artigos presentes no livro e me deparei com o dilema de Hilda
Hilst.
Veja bem, ela escrevia prosa e poesia “séria” até a década de 90. Seus
textos eram densos e falavam sobre a morte, a alma, as consequências. Ela era
respeitada por um número ínfimo de críticos e leitores que reconheciam a sua
literatura como a de melhor tipo, mas sua obra não era acessível, a tiragem era
escassa e consequentemente, vendia pouco. Ela sabia, no entanto, que isso não
se devia completamente à sua difícil escrita, e sim ao fato de ser mulher.
Hilda falava sempre em entrevistas que a culpa de toda a sua falta de sucesso
se devia ao sexo com o qual nasceu. Em entrevista para a revista A-Z, ela fala:
“Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam.”
Hilda Hilst
sempre foi uma feminista inveterada. Sua ousadia quando moça chocava não só o
Brasil, como o exterior também, e ela sempre esteve à frente de seu tempo –
flertando como uma menina não deveria, falando palavrões e enfrentando os
homens, e tendo na ponta de sua caneta uma escrita afiada. Seu pai era louco, e
era ela a chefe da família, o que desenvolveu nela uma autonomia poucas vezes
vista. Homem nenhum poderia mandar nela, não era sua natureza.
Aos sessenta anos, então, decidiu que estava cansada de fazer a sua
literatura usual e começou a escrever “bandalheiras” (termo várias vezes
utilizado por ela). Publicou “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, com muita
dificuldade, já que ninguém aceitava o manuscrito, e causou um furor na
sociedade conservadora brasileira da época. Achavam que ela tinha enlouquecido.
Como era possível uma mulher escrever daquele jeito?
Claro que outras mulheres já tinham escrito literatura erótica – Anaïs Nin
e Anne Desclos também estão nesse hall.
No entanto, o contexto muda. Anaïs só teve suas obras eróticas publicadas
depois de sua morte, em 1979, portanto não viu nenhuma repercussão. Ela era
ousada em seu vocabulário, para a época em que escreveu suas obras, mas Hilda
Hilst não acreditava que estas podiam ser consideradas pornográficas. Sobre “Pequenos Pássaros”,
ela disse:
“Aqueles contos da Anaïs Nin, por exemplo, são finos demais, delicados. Não são para tempos de Aids. Pra tempos de Aids, as coisas tem que ser mais pesadas, para você ter aquele prazer que, lendo Anaïs Nin, você não tem.”
Anne Desclos escreveu o polêmico “A história de O” sob o pseudônimo de
Pauline Réage, em meados da década de 50. O livro fala sobre uma sociedade
secreta sadomasoquista, onde uma jovem é iniciada em práticas submissas. Ela
admite ter se inspirado no Marquês de Sade (apesar de sua obra ser um pouco
mais leve que a dele) e a produziu como forma de desafio. Queria provar que uma
mulher tinha a mesma capacidade de escrever literatura erótica que um homem.
Ao contrário de Hilda Hilst e
Anaïs Nin, as mulheres presentes na obra de Anne Desclos eram totalmente
entregues aos homens. Não só na sociedade secreta elas eram submissas, mas em
toda a sua vida. Relacionado à isto, temos uma entrevista muito interessante de
HH no livro “Fico Besta Quando Me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst”, em
que o interlocutor pergunta à autora como ela enfrentou o fato de as feministas
serem contra a pornografia porque ela sempre coloca as mulheres em um papel de
submissão. Hilda respondeu:
“Realmente eu recebi algumas cartas de mulheres dizendo que eu era machista, que tratava a mulher com desprezo absoluto. Mas não sou eu que trato, é o personagem. (...) O que ocorre é que geralmente as pessoas confundem o autor com o personagem.”
Concordo com ela. Em literatura, você tem que saber desafixar essa imagem,
porque a partir do momento em que o autor escreve sobre outras pessoas, ele
deixa de ser ele. Ele pode ser quem quiser. Claro que por meio de alguns
personagens o escritor pode deixar transparecer seus pensamentos, mas isto é
livre, varia de acordo com o autor.
O fato é que, com o passar do
tempo, as pessoas começaram a notar que as mulheres também possuíam desejos e
uma sexualidade inata. Isso é um tema de discussão atual, e provavelmente vai
persistir por muitos anos. É claro, para mim, que a literatura erótica de Anaïs
Nin, Anne Desclos e Hilda Hilst colaboraram muito para a causa feminista.
Provou-se que as mulheres não só podem gostar de fazer sexo, mas como também
gostar de escrever sobre ele. A partir delas, milhares de outras mulheres se
encheram de coragem e pensaram: “Se elas conseguiram, porque não eu?”. Isso
reforçou o empoderamento feminino. Somos donas do nosso corpo, podemos transar,
podemos divulgar as nossas ideias. Podemos fazer com que os homens nos leiam e
sintam prazer. Podemos fazer a sociedade nos engolir e nos aceitar por quem nós
somos.
O resultado do processo que essas
autoras iniciaram são os vários livros eróticos disponíveis hoje no mercado - um
mercado constituído 99% por mulheres.
Que diria Hilda Hilst se visse
esse período em que estamos vivendo? - O seu nome estampado na sessão de best-sellers
do jornal, junto com várias outras mulheres do segmento erótico, com certeza a
deixaria besta.
Agora nós te entendemos, Hilda.
Referências Biblíograficas:
BEDELL, Geraldine. I wrote the story of O. The Guardian. Link aqui.
DINIZ, Cristiano. Fico besta quando me entendem - Entrevistas com Hilda Hilst. 2ª Edição. São Paulo. Biblioteca Azul, 2013. 236 páginas.
HILST, Hilda. Pornô Chic. 1ª Edição. São Paulo. Biblioteca Azul, 2014. 274 páginas.
NIN, Anaïs. Pequenos Pássaros: Histórias Eróticas. Rio Grande do Sul. L&PM Pocket, 2013. 143 páginas.
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